Michael J. Gorman, em seu livro Introdução à exegese bíblica, diz: “O uso do termo crítica, como usado em crítica da redação, não implica necessariamente julgamento negativo; o significado primário do termo é análise, embora também possa significar julgamento — positivo, negativo ou ambos — acerca do valor histórico, literário ou teológico do texto”.
Quando lemos, hoje, o Novo Testamento, será que de fato estamos lendo aquilo que Lucas, João, Paulo e os outros autores escreveram tantos séculos atrás? Tais perguntas não se destinam meramente a levantar dúvidas quanto aos documentos em que baseamos a fé, mas a chamar-nos a atenção sobretudo para o tipo e o tamanho do problema com que lida a crítica textual. E tal problema torna-se ainda mais evidente quando nos lembramos, em primeiro lugar, de que todos os originais do Novo Testamento desapareceram por completo e mais nenhuma colação com eles pode ser possível.
A razão para a perda prematura dos originais neotestamentários certamente foi a pouca durabilidade do material em que, conforme o uso da época, escreviam-se livros e cartas: o papiro, o qual não era mais durável que nosso moderno papel. Providencialmente, porém, antes que se tornassem ilegíveis ou desaparecessem, foram copiados. Isso leva-nos ao segundo fator que evidencia a seriedade do problema em questão: os erros introduzidos no texto mediante o processo de cópias manuais.
Durante esse processo de cópias e recópias manuais, que se estendeu por 14 séculos até a invenção da imprensa, inevitavelmente muitos e variados erros foram cometidos, resultado natural da fragilidade humana. E, à medida que aumentavam as cópias, mais se multiplicavam as divergências entre elas, pois cada escriba acrescentava os próprios erros àqueles já cometidos pelo escriba anterior. E essas variantes textuais têm suscitado sério problema para os estudiosos do Novo Testamento — dando margem para que os céticos questionem sua pureza textual: “Qual a forma correta do texto, ou que dizia exatamente o original?”. A essa pergunta é que tratam de responder os críticos textuais. Seu objetivo é examinar criticamente a tradição manuscrita, avaliar as variantes e reconstruir o texto que possua a maior soma de probabilidades de ser o original ou a forma primitiva do autógrafo.
Dificuldades técnicas
O problema do qual se ocupa a crítica textual do Novo Testamento aumenta consideravelmente quando se verifica a dimensão dos três principais obstáculos que necessitam ser transpostos para a restauração do texto apostólico. Uma análise mais criteriosa, porém, revelará que, se por um lado tais obstáculos dificultam os trabalhos textuais, por outro, proporcionam maior solidez e confiabilidade às conclusões.
- O primeiro deles consiste na distância entre as cópias mais completas e os originais. O Novo Testamento estava completo, ou essencialmente completo, por volta do ano 100, sendo que a maioria dos livros já existia cerca de 20 a 50 anos antes dessa data, e, de todas as cópias manuscritas que chegaram até nós, as melhores e mais importantes remontam aproximadamente aos meados do século IV. A distância em relação aos autógrafos, portanto, chega a perto de três séculos, o que, se por um lado pode consistir num problema, por outro faz com que o Novo Testamento seja a obra mais bem documentada da antiguidade.
Além dos famosos manuscritos do século IV, escritos em pergaminho, existem ainda consideráveis fragmentos em papiro de praticamente todos os livros do Novo Testamento, que nos fazem recuar até o século III ou, como em alguns casos, até meados do século II. Frederic G. Kenyon disse: “O intervalo, então, entre as datas da composição original e a mais antiga evidência subsistente torna-se tão reduzido de sorte que é praticamente desprezível, e o derradeiro fundamento para qualquer dúvida de que nos hajam as Escrituras chegado às mãos substancialmente como foram escritas já não mais persiste. Tanto a autenticidade quanto a integridade geral dos livros do NT podem considerar-se como firmadas de modo absoluto e final”.
- Existem atualmente cerca de 5.500 manuscritos gregos completos ou fragmentários do Novo Testamento, sem falar nos quase 13.000 manuscritos das versões e nos milhares de citações dos antigos Pais da Igreja. Os problemas e dificuldades da crítica textual, portanto, surgem mais por uma superabundância de evidências do que propriamente por uma insuficiência delas. Todavia, novamente a limitação se torna em vantagem, pois, apesar de a multiplicidade de manuscritos oferecer ensejo para os mais variados erros de transcrição, oferece também muito mais elementos de comparação.
Frederic F. Bruce declarou: “Felizmente, se o grande número de manuscritos aumenta o índice de erros escribais, aumenta, em medida idêntica, os meios para a correção desses erros, de modo que a margem de dúvida deixada no processo de restauração dos termos exatos do original não é tão grande como se poderia temer; pelo contrário, é, na verdade, marcadamente reduzida”.
Há ainda outro fator a ser observado. O elevado número de documentos existentes faz com que o NT tenha muito mais apoio textual que qualquer outro livro dos tempos antigos.
- O terceiro e maior obstáculo é a elevada cifra de variantes existentes. A consequência natural da multiplicação dos manuscritos do Novo Testamento pelo espaço de 1.400 anos foi o surgimento de incontáveis variações textuais. Já foram calculadas cerca de 250.000 variantes, ou seja, mais variantes entre todos os manuscritos que as palavras que o Novo Testamento contém. Só um estudo de 150 manuscritos gregos do Evangelho de Lucas revelou mais de 30.000 textos divergentes. É opinião unânime entre os críticos textuais que não possuímos nenhum manuscrito que tenha preservado sem nenhuma variação o texto original dos 27 livros do NT, nem sequer de apenas um deles.
Apesar das enormes dificuldades advindas desse fato, devemos notar que quase a totalidade das variantes diz respeito a questões de pouca ou nenhuma importância. São variações na ordem relativa de palavras numa frase, no uso de diferentes preposições, conjunções e partículas, nas preposições que acompanham determinados verbos ou em simples modificações de natureza gramatical, muitas das quais até nem poderiam ser representadas numa tradução portuguesa. Em outras palavras, “o número de variantes que se revestem de importância, especialmente no que diz respeito à doutrina, é assaz reduzido”.
Se os números são assustadores, essa declaração é, no mínimo, confortadora, e sua veracidade pode ser atestada mediante o exame de qualquer aparato crítico de uma edição técnica no Novo Testamento grego. Além disso, há mais de um século, duas das maiores autoridades no assunto, B. F. Westcott e F. J. A. Hort, já afirmavam que apenas a milésima parte do texto do Novo Testamento ainda não estava criticamente assegurada. E, mais recentemente, Bruce destacou que as pouquíssimas variantes que subsistem íveis de certa dúvida não afetam “nenhum ponto importante, seja em matéria de fato histórico, seja em questão de fé e prática”.
Conteúdo inspirado no livro “Crítica Textual do Novo Testamento” de Wilson Paroschi.